segunda-feira, 21 de março de 2011
Notas Perdidas - Cap.1
É incrível a minha habilidade de gerar insônia. Fantasmas concebidos através das batidas emocionantes de meu coração, são contra-atacados pelo exército estratégico racional comandados pelo general cérebro. A colisão é inevitável, o tremor é sentido pelos ossos que presumem ser um movimento externo, para se dar conta logo mais, de que sua própria moradia está em perigo inconstante, surpreeendente. Se ainda existe um eu nessa história de fim de madrugada, é mero espectador, escravo das janelas digitais, das prisões contemporâneas legalizadas e livres. É amargo o amanhecer, o fim do sonho.
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
A Estranha Conversa
- Você está morto.
E então despertei. Com uma certa aminésia. Sabia quem eu era, lembrava de detalhes mínimos da minha vida, mas havia um espaço negro na minha recente história. Eu não sabia onde eu estava, nem quem havia proferido a frase que me acordou. Demorei minutos para entender o que havia sido dito. Eis o diálogo que ocorreu nesses minutos:
- O que? Quem está aí? - este era eu. Meio acordado, completamente atordoado. A visão estava turva, pois me sentei muito rápido. Estive deitado por muito tempo.
- Vou ascender algo, para que enxergue melhor. - era a voz do despertador. Masculina. Minha audição em perfeitas condições permite que eu escute o riscar do fosfóro, algo queimando, lábios pitando algum objeto. Não precisaria do meu olfato para descobrir que o homem à minha frente ascendeu um cigarro. Porém, minha curiosidade em saber do meu atual estado, fez com que minhas narinas aspirassem o cheiro cancerígeno. Tossi, como se houvesse sentido aquele cheiro pela primeira vez. - Câncer. - disse o homem. Sua voz não me era familiar, nem um pouco. - Irônico, não? - sua voz estava em perfeitas condições, ele até tinha uma voz atraente, de galã de filmes.
- Quem é você? - resolvi intervir.
- Já assistiu o grande filme "O Grande Tenista"?
- O que? - indaguei em meio mais uma tosse.
- "Eles não fazem raquetes duráveis, Leroy. Aliás, eles não fazem mais nada que dure".
- Do que você está falando? O que está acontecendo? - minha visão estava perfeita, constatei. Desde sempre. O lugar era do mais profundo ébano. Eu podia ver a fumaça me abraçando por trás. Virei me de pronto. Um olho em chamas me observava. A fumaça vinha diretamente dele. Ao lado, meio sorriso revelava-se, graças ao lampejo da chama.
- Achou. - o fumante disse em meio ao meio sorriso.
- Olha, o que significa tudo isso? Onde estou? A última coisa que me lembro foi de...você ter dito que eu estava...
- Morto.
Fazia sentido. Aquele lugar, o ambiente escuro. Ainda sentado, coloquei as mãos à cabeça. A idéia veio como uma bala perdida. Tudo indicava que eu realmente estava morto.
A partir de agora, inicia-se um novo diálogo, onde um homem tenta bater de frente com seu destino trágico, vestido com roupas de gala e fumando um cigarro. Ou, assim parecia ser. É aqui que o morto, teima em não aceitar o seu fato. Pois as injustiças, são muitas.
- Como assim morto?
- Ok, eu menti. Você não está morto...totalmente.
- O que? Então estou vivo!
- Se você considera alguém com uma doença terminal incurável em estágio final, uma pessoa viva...
- Doença terminal?
- Câncer.
- Meu deus. Então estou para morrer.
- Você já está morto.
- Mas você disse...
- Escuta, uma respiração à mais, uma a menos. Um órgão funcionando a mais, outro a menos. Qual a diferença quando todos morreram, certo?
Certo. Ele estava certíssimo.
- Que tipo de câncer?
- Bom, como é mesmo que eles dizem? "Do tipo que não se cura."
- Eu quis dizer...
- Eu sei o que você quis dizer. Mas não importa, é câncer.
- Isso aqui é o inferno?
- O que faz você pensar isso? Sou eu? Desculpe, não foi a intenção.
- Então é o céu?
- Pense um pouco, parceiro.
- Eu não estou morto - ele olha para mim com uma breve cara de desaprovação. - totalmente. - e agora sorri por entre a vagalume em chamas e a cortina de fumaça. - Então é provável que estajamos em meu subconsciente.
- Não doeu pensar um pouco, doeu? Você acertou. É o que sobrou de você por enquanto. Mas você sabe que logo vai se apagar também. Você está morto.
- Foi câncer de pulmão?
- Caramba, isso realmente importa? É por causa do cigarro? - assenti com a cabeça - Foi o que eu pensei. Devia ter escolhido uma lanterna, mas você sabe, eu gosto do clima noir.
- Quem é você? Espera, você disse sobre um filme. "O Grande Turista", é isso?
- Tenista! "O Grande Tenista".
- Ok. Desculpe. Eu nunca vi esse filme.
- Claro que não. Esse filme não existe.
- O que? Pare de zoar com a minha cabeça!
O homem se aproximou de mim e agora conseguia ver seu rosto com um pouco mais de nitidez. Seus cabelos estavam penteados totalmente para trás, com alguma substância pastosa que impedia o despenteamento. Seu nariz era um pouco avantajado e as sombrancelhas eram metódicas, dando um ar artificial e plastificado ao homem. Ele parecia um boneco, a parte o nariz.
- Sua cabeça já está zoada, meu caro. É melhor aproveitar. Não sei quanto tempo ainda nos resta, já que se você parar de funcionar, eu também vou. Vamos conversar um pouquinho?
(continua)
E então despertei. Com uma certa aminésia. Sabia quem eu era, lembrava de detalhes mínimos da minha vida, mas havia um espaço negro na minha recente história. Eu não sabia onde eu estava, nem quem havia proferido a frase que me acordou. Demorei minutos para entender o que havia sido dito. Eis o diálogo que ocorreu nesses minutos:
- O que? Quem está aí? - este era eu. Meio acordado, completamente atordoado. A visão estava turva, pois me sentei muito rápido. Estive deitado por muito tempo.
- Vou ascender algo, para que enxergue melhor. - era a voz do despertador. Masculina. Minha audição em perfeitas condições permite que eu escute o riscar do fosfóro, algo queimando, lábios pitando algum objeto. Não precisaria do meu olfato para descobrir que o homem à minha frente ascendeu um cigarro. Porém, minha curiosidade em saber do meu atual estado, fez com que minhas narinas aspirassem o cheiro cancerígeno. Tossi, como se houvesse sentido aquele cheiro pela primeira vez. - Câncer. - disse o homem. Sua voz não me era familiar, nem um pouco. - Irônico, não? - sua voz estava em perfeitas condições, ele até tinha uma voz atraente, de galã de filmes.
- Quem é você? - resolvi intervir.
- Já assistiu o grande filme "O Grande Tenista"?
- O que? - indaguei em meio mais uma tosse.
- "Eles não fazem raquetes duráveis, Leroy. Aliás, eles não fazem mais nada que dure".
- Do que você está falando? O que está acontecendo? - minha visão estava perfeita, constatei. Desde sempre. O lugar era do mais profundo ébano. Eu podia ver a fumaça me abraçando por trás. Virei me de pronto. Um olho em chamas me observava. A fumaça vinha diretamente dele. Ao lado, meio sorriso revelava-se, graças ao lampejo da chama.
- Achou. - o fumante disse em meio ao meio sorriso.
- Olha, o que significa tudo isso? Onde estou? A última coisa que me lembro foi de...você ter dito que eu estava...
- Morto.
Fazia sentido. Aquele lugar, o ambiente escuro. Ainda sentado, coloquei as mãos à cabeça. A idéia veio como uma bala perdida. Tudo indicava que eu realmente estava morto.
A partir de agora, inicia-se um novo diálogo, onde um homem tenta bater de frente com seu destino trágico, vestido com roupas de gala e fumando um cigarro. Ou, assim parecia ser. É aqui que o morto, teima em não aceitar o seu fato. Pois as injustiças, são muitas.
- Como assim morto?
- Ok, eu menti. Você não está morto...totalmente.
- O que? Então estou vivo!
- Se você considera alguém com uma doença terminal incurável em estágio final, uma pessoa viva...
- Doença terminal?
- Câncer.
- Meu deus. Então estou para morrer.
- Você já está morto.
- Mas você disse...
- Escuta, uma respiração à mais, uma a menos. Um órgão funcionando a mais, outro a menos. Qual a diferença quando todos morreram, certo?
Certo. Ele estava certíssimo.
- Que tipo de câncer?
- Bom, como é mesmo que eles dizem? "Do tipo que não se cura."
- Eu quis dizer...
- Eu sei o que você quis dizer. Mas não importa, é câncer.
- Isso aqui é o inferno?
- O que faz você pensar isso? Sou eu? Desculpe, não foi a intenção.
- Então é o céu?
- Pense um pouco, parceiro.
- Eu não estou morto - ele olha para mim com uma breve cara de desaprovação. - totalmente. - e agora sorri por entre a vagalume em chamas e a cortina de fumaça. - Então é provável que estajamos em meu subconsciente.
- Não doeu pensar um pouco, doeu? Você acertou. É o que sobrou de você por enquanto. Mas você sabe que logo vai se apagar também. Você está morto.
- Foi câncer de pulmão?
- Caramba, isso realmente importa? É por causa do cigarro? - assenti com a cabeça - Foi o que eu pensei. Devia ter escolhido uma lanterna, mas você sabe, eu gosto do clima noir.
- Quem é você? Espera, você disse sobre um filme. "O Grande Turista", é isso?
- Tenista! "O Grande Tenista".
- Ok. Desculpe. Eu nunca vi esse filme.
- Claro que não. Esse filme não existe.
- O que? Pare de zoar com a minha cabeça!
O homem se aproximou de mim e agora conseguia ver seu rosto com um pouco mais de nitidez. Seus cabelos estavam penteados totalmente para trás, com alguma substância pastosa que impedia o despenteamento. Seu nariz era um pouco avantajado e as sombrancelhas eram metódicas, dando um ar artificial e plastificado ao homem. Ele parecia um boneco, a parte o nariz.
- Sua cabeça já está zoada, meu caro. É melhor aproveitar. Não sei quanto tempo ainda nos resta, já que se você parar de funcionar, eu também vou. Vamos conversar um pouquinho?
(continua)
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
Sem título
Ok, vamos resolver isso de uma vez por todas.
Não consigo dormir e isso tem a ver com todas vocês. Isso tem a ver com nós. Eu e vocês. Então, deixa eu pelo menos resolver isso de uma vez por todas, ok? Vocês podem ficar em silêncio se quiserem e se não quiserem, ficarão de qualquer modo.
Bem, primeira não tão primeira. Você não é um mistério ao todo e nem tem muita participação nisso, mas você foi a primeira a ver que eu não era lá tudo isso que você esperava. E nós nem nos beijamos, nem nada. Estávamos ambos carentes, achando que "tudo bem, é isso que temos por enquanto". Pouco sei de você após aqueles 6 meses. Melhor dizendo, nada sei. Mas suspeito. Suspeito que esteja feliz com um bom homem ao teu lado e que seu emprego deve ser assim, um dos melhores do mundo. Não esperava menos. Não doeu tanto a rejeição. O que doeu foi aquela coisa do "vamos ser amigos". Infelizmente, eu faltei nessa aula, então...
Segunda, mas a mais marcante. É. Você. A garota que mais soube de mim e isso veio a ser minha derrota. Muito do que penso sobre as mulheres hoje, vem de você. Não é um bom exemplo, então podemos concluir que minha visão das mulheres não é das melhores. Sabe aquela dor no peito que dá só de respirar e não conseguir engolir um grão de arroz? Aprendi com você também. 3 anos para descobrir que tudo não passava de uma questão de...serventia. Quando não servia mais, o descarte foi inevitável. Eu também faria e já fiz isso! Mas o problema foi o que servia e o que não servia. O amor, a lealdade, a mágica, a confiança. Isso não servia. E o que servia, eu não tinha. O futuro. As garantias de que eu seria o seguro desemprego, o seguro casa, o seguro carro. De que adianta investir em ações desvalorizadas no mercado, certo? Eu não te culpo, mas também não lhe aguento perto de mim. Mas adivinha? Você está com um homem seguro, com um emprego que lhe da boa renda e provavelmente está feliz. Isso possibilitou o "vamos ser amigos"...bom, agora são 3 anos sem contato algum. Salvo alguns terceiros idiotas que insistem em me dar notícias periódicas sobre sua vida que, pode interessar ao meu ego, mas, eu já to quase saindo da adolescência.
A mais recente. A mais distante. E a mais sentida. E de todas, era a que eu apostaria minha vida e trocaria tudo pelo amor dela. Eu ainda não digeri muito bem essa, então, paro por aqui. Mas, vejam que ironia: eu não prestei.
Eu não devo prestar, é isso que me parece. Quanto mais se presta, mais chato parece. Eu devo trair, eu devo pensar em dinheiro, trabalho, filhos, família. Eu devo esquecer os toques, as confiabilidades, as sensações corporais, os frios na espinha. Trocar tudo isso por uma posição de homem perante seus lindos corpos nus e provar que eu sou o seguro que sempre quiseram.
Eu só queria escrever isso, porque não consigo dormir e a culpa me atormenta sem eu saber ao menos onde errei. E é algo que nem vocês sabem a resposta.
O problema é esse: eu tenho a memória muito boa. Para dados e para lembranças boas. Mas também lembro das coisas ruins e das palavras dilaceradoras que faziam bife da minha carne. Esse é o problema. Quero Alzheimer.
(Eu sei que não citei aquelas que eu machuquei, mas esse não foi o intuito. Eu já pedi desculpas para vocês...não pedi?)
domingo, 12 de setembro de 2010
Dias do Felino
O que aconteceu nos últimos dois dias? Eu não consigo relacionar.
Banquei o Homem-Gato. Realizei minha refeição e saí de casa para esticar as pernas. Apenas para cair em outra casa. Vi a vida de outros por uma janela trancada para sempre. Como um Homem-Gato, não retornei a minha casa e acordei noutro dia, observando pela janela que se abre. Vi baratas gigantes em cima de prédios. Tão grandes e tão significativas. Vi os olhos de um gato saindo direto de um banco. Mais significativo ainda. Voltei para casa. Comi algo e meus curadores saíram sem muitas satisfações, sabendo do meu papel felino. Tornei a sair e ir para outra casa. Dezenas de gatos. Fizemos nossa boemia e então, alguns gatos resolveram se separar e eu os acompanhei. Gatos familiares. Fui apresentado a uma gata no cio. Aí percebi, que minhas garras foram desaparecendo, meus olhos engrandecendo. Ela percebeu e foi-se embora. Corri para casa, deitei na cama. Meu olfato percebeu o cheiro da culpa incabível se aproximando.
Eu me senti um cachorro.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Apenas um desses contos...
Um jovem andava pela rua, quando escutou os gritos "ei! Jovem! Jovem garoto! é! você mesmo! tem um minuto?" um homem de certa idade não aparente, que mais parecia um velho, com entradas para futura careca. De agrado, esse Jovem parou o relógio, conseguiu um minuto e aproximou-se do vocativo. "bom Jovem, de pouca idade, fresco na mente. esse minuto será muito favorável. apenas quero que me ajude num trabalho de malhar. vê a cruz? claro que vê a cruz, com seu dourado e rubis. tenho que prega-la na porta desta casa. esse é o meu trabalho, mas ela é pesada e preciso demais força para prega-la. pode conceder teus braços jovens para que assim, a pregação termine mais rápido?" e o Jovem disse sim e foi ajudar o homem a pregar a cruz. Os dois começaram a martelar a porta da casa. De início, o Jovem batia pausadamente, sem muita força "vamos garoto! mais força nisso! quanto mais forte, mais firme a cruz fica!" e mais gritos do homem da cruz, fizeram com que o Jovem acelerasse a batida e aplicasse mais força no punho. Pregavam a cruz com os punhos cerrados, como uma luta. Pa Pa Pa Pa Pa Pa Pa! Sem parar! "vamos! a cruz tem que ser pregada! vamos!" e os gritos não paravam. Quando se deu conta, não estavam apenas os dois pregando. Mais pessoas iam chegando atraídas pelo canto do homem e a batida da pregação. Pa Pa Pa Pa Pa Pa Pa "sem parar!" Pa Pa Pa Pa Pa Pa Pa "sem parar!" era uma linda música e foi atraindo os apaixonados. Certa hora, os punhos do Jovem começaram a sangrar. Virou para perguntar ao homem da cruz, se podia parar, mas seus gritos mantinham um silêncio ao redor. Pa Pa Pa Pa Pa Pa "sem parar!" e parou de reclamar, ao notar que seu sangue na verdade, fazia um belo rubi na cruz. Uma multidão veio para ajudar a pregar. E o homem da cruz, parecia delirar, olhando para os céus de olhos fechados e cantando em gargalhadas, como um pianista cego. "ha ha ha ha ha ha sem parar!". O primeiro que foi ajudar, lembrou-se do relógio e viu que o minuto se fora. Virou-se para ir embora, mas a multidão o impedia. Os que não ajudavam a pregar, ajudavam na romaria. Não conseguia sair, e a multidão o esmagava contra a cruz. Sentiu um tiro no estômago, um na face. Não percebeu muito bem, até notar que confundiram-no com a cruz. Arriscou avisar, porém, era tarde. Morreu antes de saber, se a pregação havia terminado.
domingo, 15 de agosto de 2010
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
Danica
Seu cigarro está pra acabar, assim como o turno do astro sol, que vai se pondo ao fundo. Uma visão privilegiada para quem mora no apartamento número 94, da torre 1. Condomínio Joy Dimension. Um dia já foi uma bela réplica dos prédios da famosa orla de Miami Beach. Não haver uma praia ali, era mero detalhe. Já foi um prédio cor salmão, que pela noite, abandonava a cor clara, para gritar com seu magenta neón. Mas isso foram outros tempos e ela nem era residente naquela época. O portal do prédio, estava velho e sujo. Apenas chegando muito perto, era possível uma leitura do pórtico. Era um arco em cor de madeira e o letreiro também da mesma cor. Porém, de noite era outro grito neón, dessa vez verde. Danica lembra ter lido aquilo apenas uma vez, quando chegou com suas malas, acompanhada de três amigas. Todas traziam bagagens e sonhos. As amigas se foram com o tempo e os sonhos também. Eles não caíram na promessa do pórtico do condomínio: “Uma outra Dimensão!”. Bastaram algumas semanas e o apartamento tornou-se mera extensão da realidade. As quatro jovens descobriram a vida no Lacienda. E que uma vez vivendo ali, não escapariam de formas santificadas. E, fora Danica, todas as outras saíram de lá com seus pecados em busca do paraíso. Danica preferia viver no inferno com seus próprios demônios e os dos outros. Não faria como Ana, que foi mandante do assassinato da esposa de seu marido, para que assim, pudessem se casar e ele a sustentasse. Nada contra Ana, as duas ainda se falam normalmente, foram mais amigas e hoje se respeitam. Mas Danica não colocaria tanto esforço por uma “estável”. Não. Lana virou a rainha branca. Começou a vender cocaína durante as noites, entre um intervalo de um programa e outro. Ficou “famosa” demais pela cidade, resolveu mudar para Europa. Com os contatos certos, o corpo quase perfeito e sua habilidade com facas, logo tornou-se “La Reine Blanche”. Engraçado era que ela não usava drogas. Quando cheirou pela primeira vez, enquanto estava em um hotel em Nice, comemorando a maior venda de sua vida, ela teve uma arritmia cardíaca e morreu. Barbie, foi a primeira a sair. Usou de seu corpo para pagar bons estudos. Hoje é uma vice-presidente da maior imobiliária do país. Nunca mais ela pisou novamente em Lacienda e fez uma visita para Danica. Todas foram viver com seus pecados no paraíso, Lana já na versão 2.0. O cigarro de Danica atinge o filtro, o sol se foi, a noite chega e o celular pode tocar a qualquer momento. Ela descola o tórax da janela e desliza o vidro que a fecha. Não há mais as cortinas floridas que ela trouxe de sua casa. Certa vez bebeu tanto, no nascer do sol, que ascendeu um cigarro e o foi ver a aurora do dia. Distraída, deixou o cigarro ao lado do braço direito. Adormeceu ali mesmo e só acordou com o cheiro de tecido queimado. Queimou o único resquício de sua adolescência. Porém, ela realmente não ligava para isso. Não mais. Com a ajuda das luzes da noite, ela tateou procurando o interruptor e o empurrou para cima. Uma luz fraca surgiu no teto do apartamento. Era entre o amarelo e o laranja, não se decidia. Apesar de fraca, foi suficiente para Danica avistar o sofá. Estava envolto em um lençol azul marinho e dividia a sala apenas com a TV. Haviam mais coisas ali, na época de ouro. Quando, uma a uma, as meninas foram saindo, algumas coisas também foram. Mas a maioria, Danica trocou por drogas e dinheiro. Dinheiro que logo virou bebida. Agora ela podia contar nos dedos as coisas que haviam no apartamento. Sofá velho, lençol azul marinho, pequena mesa retangular, que era suporte da TV usada e velha. Antes, era uma televisão bem mais nova, muito bonita. Virou um saquinho de açucar, com resquícios de cocaína. Depois de alguns dias, a abstinência do quadrado mágico, foi maior do que a abstinência de crack e Danica conseguiu a velha televisão usada, ficando assim, estável. Havia uma cama arrumada, mas raramente usada. Danica gostava de dormir no sofá, assistindo ao talk-show do Skinny. Ao lado do sofá, um cinzero preso em um pedestal. E era só, mais nada. Danica deitou-se ao sofá e procurou algo com sua mão próxima às nádegas. Não encontrou, pois aquilo não existia mais. Levantou-se, foi até a TV. Apertou o botão preto que estava próximo à pequena luz vermelha. A princípio não houve imagem, apenas o som de risadas falsas. Pelo horário, era o seriado “Missy Mississipi”. Mais uma reprise. Era tão velho, preto e branco, sem graça, de tanto que fora reprisado. Danica odiava o seriado. Voltou ao sofá e deitou-se novamente. A imagem surgiu de repente na tela preta. Sua calcinha estava com o lado esquerdo sendo engolido por suas flácidas nádegas. Ela meteu a mão por debaixo da calça, ajeitou a roupa de baixo e ficou assistindo “Missy Mississipi”. Riu de algumas piadas, ascendeu mais um cigarro. Começou a escutar tiros do lado de fora, carros passando correndo. Uma noite quente de verão. O mundo se agita o triplo do habitual. Sentiu vontade de urinar. Levantou-se e foi até o banheiro. Baixou as calças com força, para ter certeza de que levava a calcinha junto e sentou no vaso limpo. Era uma casa limpa, apesar da precariedade do prédio e da falta de móveis. Aliviou-se, tragando seu cigarro. Não era o favorito. “Ei, Lucky, me vê um maço de Liberty”, ela perguntou. “Jan, sinto muito xuxu, mas acabou meu estoque de Liberty”. Ela pensou, que deveria parar de comprar cigarros com Lucky. Ele já foi um bom revendedor, mas perdeu espaço nos últimos anos. “Ele não tinha tanta sorte assim” ela pensava enquanto a urina dourada descia de sua vagina. “Então me da um Boulevard mesmo”. Ela não suportava um Boulevard. Até o nome, ela não suportava. Gosto ruim, cheiro ruim, tudo ruim. “Por que merda eu pedi um Boulevard, então? Eles são mais baratos Dani, você sabe disso.” Terminou o cigarro e terminou de urinar. Danica levantou-se, subiu a calcinha e depois sua calça preta. Puxou a descarga, enquanto puxava outro cigarro do maço. Tossiu. “Isso que dá fumar, Danica. E ainda por cima, fumar um maço de Boulevard.” Era o último. Ascendeu-o e depois foi lavar as mãos. Jogou uma água no rosto e tentou se olhar no espelho, mas este estava todo trincado. Haviam dez Danicas ali e ela ficou com preguiça de analisa-las. Andando vagarosamente para seu sofá, ela assistia de longe os créditos do seriado, mas não ficou nem feliz e nem triste com isso. De sopetão, a caixa preta apagou-se. Danica suspirou, como quem já se cansou de algo. Já haviam dias em que a TV estava com esse surto de desligar-se sozinha. Continuou sua caminhada desprenteciosa. Quando estava à frente do aparelho, agachou-se e viu-se com o reflexo da tela. Notou alguns furinhos na sua face. Não muitos, mas um sinal da idade. O cabelo estava preso com um coque. A cor oscilava entre um loiro falso e o castanho escuro veridadeiro da raiz. Os olhos, pequenos e escuros. Usava um top cinza decotado. Apalpou os seios, para certificar-se de que o implante continuava ali. Ainda imaginava que um dia, a coisa ia escapar dali e sair quicando pela sala ou pior, durante um programa. Ela ainda travava quando um cliente, afoito por peitos, metia os dentes e os apertava. Estavam firmes, do jeito que ela e os outros gostam. Estava a mesma coisa de sempre, nenhuma novidade. Ligou a TV de novo, tornou a deitar-se ao sofá, fumando o último Boulevard. Agora, o programa era “Lei da Sobrevivência”. Pequenos documentários de pessoas que sobreviveram à uma provação horrível da vida. Danica nunca via algum programa sobre sobreviventes do Lacienda. Quem sabe hoje? É, ela tinha algumas pequenas expectativas da vida que a faziam esquecer certos absurdos. O programa estava pra começar, a abertura no seu encerramento. Quando o narrador pôs-se a falar, o celular tocou. Hora de trabalhar.
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